terça-feira, fevereiro 4

Conto - Fumaça Rosada Reflexo de Meu Espelho

  Eu havia perdido tudo em minha vida - Meu dinheiro, meu emprego, meus amigos, minha alegria iludida
Mas nenhuma perda foi tão insuportavelmente dolorida como quando a vi estirada no chão da rua
Dois malditos desgraçados haviam assaltado o ser que mais amei
Não bastasse o ato, presentearam seu corpo com dois tiros, um nas costas e outro no pescoço
Foram embora em uma moto roubada com os pertences arrancados dela e a deixaram lá
Miseravelmente sozinha e morta no chão, às 23h15 de uma quarta-feira fria.

Sofri como um cão deixado pelos donos que se vê perdido em uma estrada
Só. Com dor.
Um buraco gigantesco dentro de meu peito não aguentava a falta que ela me fazia
Meu anjinho, que por tão pouco tempo consegui amar, tiraram sua vida numa covardia desumana
Não era possível tirar a imagem que vi dela sem vida naquela rua. Eu a havia perdido pra sempre.

Desde o dia que a conheci eu amei de primeiro instante
Ela era viva, branca, de olhos que se faziam tão claros que ao Sol mal os podia ver
E quando ela me abraçava era como se todos os problemas estúpidos da minha de vida, sumissem.
Eram noites de muito amor
Os minutos pareciam horas quando eu a via acordando e me olhando com seu olhar tão distante
E tudo nela, seus dias; seus livros; seu tom de voz; o som da risada e o choro escondido
Tudo que faziamos, tudo, era tão fora do normal, tão mais real do que minha realidade ruim
Eu que era um cachorro sujo e não tinha mais nenhuma esperança de que nada de bom viria
Ela, a menina tinha salvado minha alma já há tanto esquecida de um lugar que eu não sabia mais sair
E me fez ama-la tanto, tanto. E mal sabia que em pouco, dois meses apenas, eu a veria partir.
Para sempre.

-

Passaram-se 84 dias da minha vida sem que eu visse o rosto que eu tanto sentia falta
Minha alma se corroia num vazio eterno
Um desespero me fazia acordar tantas e tantas vezes durante a noite
Sonhando que a via morta, gritando e sozinha.
Doia de fome, mas não conseguia comer. Doia meu corpo a falta do descanso.
Mas nada doia mais do que aquele não parar de pensar, e chorar, chorar...
Os piores dias da vida de alguém que perdeu a unica coisa que em 24 anos havia valido a pena.

Certa tarde, vindo do trabalho que há poucos dias havia voltado
Cheguei exausto do dia terrível que tivera com pensamento sempre a vagar
A chuva se fazia drasticamente, e cai mais fundo que ela em um sono que há muito precisava
Não vi mais nada.


>>>Dentro dele, repousando do jeito que realmente precisava
Acordei devagar e senti que não estava sozinho
O quarto não estava mais em um mofar esverdeado da minha tristeza de muito
Algo ali fez no momento em que abri os olhos sentir bem
Andei meu quarto rapidamente com os olhos, ainda deitado e coberto, e a vi
Sentada na cadeira, de frente para meu espelho
Quando olhei, ela, notando que eu perplexo fitava-a com os olhos, virou seu rosto sorridente para mim:

- Você está dormindo há mais de dez horas, não acha bom comer alguma coisa?

Não conseguia mexer um músculo do meu corpo, nada. Ela estava ali, bem a minha frente
Pegou um grampo que havia ali na mesa e colocou no cabelo, arrumando de um jeito que a fazia brilhar

- Eu fiquei preocupada com você. Tem tantos dias que você não dorme, não come direito
achei que precisava fazer você descansar, deu certo, faz horas que você dorme tranquilamente.

- Como você... - Eu não conseguia completar as frases, ela estava morta, e mesmo assim frente aos meus olhos. - Como você está aqui?

Continuou em uma tranquilidade serena olhar para o espelho se enxergando com surpresa
- Eu acho que desapareci por alguns dias, anos. Não sei, não consigo mais contar o tempo desde o que me aconteceu. Todos os dias são noites, e são tarde. Dias. Mas do breve dia em que perdi minha vida, pouco depois já me encontrei vagando aqui em seu quarto, infelizmente te vendo chorar e sofrer a todo momento - olhou para mim tranquilamente. - E não entendia o por que daquilo, só então depois de algum tempo entendi que havia morrido, e que você sofria por isso.

Sentei na cama me encostando na parede das minhas costas, ainda sem conseguir pensar direito. 
Ela se levantou da cadeira que estava recostada na mesa e caminhou devagar até a cama, sentou ao meu lado, me olhando tão fundo nos olhos. Eu não conseguia sentir sua matéria, mas sua presença estava ali.

-  Não consigo lembrar de como aconteceu, meu amor. Só lembro de ter visto aqueles dois homens, de ter gritado. E um tempo depois despertei aqui dentro do seu quarto, sem sentir dor nem alegria.
Não entendia o que estava acontecendo.

Tentei pegar em sua mão, segurei-a firme como se nada fosse possível de me fazer deixa-la ir
- Por que só agora você apareceu pra mim? Tem visto o quanto sofro e mal vivo desde o dia?

Seus olhos deitaram próximos aos meus, e senti a aura rosada e pura que a deixava envolta
- Vejo. Eu não sei como aparecer ou sumir. Acontece. Te vejo todos os dias, vejo a lua e o Sol aparecerem todos esses tempos frente a sua janela. Vejo que no claro você não faz questão de estar, e fecha as cortinas pela manhã, só a luz da Lua consigo enxergar. Não acho que te faça bem isso.

- Eu não aceito o brilho feliz do dia dentro de onde vivo, não tenho mais o porque; A lua sim
A lua é tão triste, vazia - mas clareia. É a unica que preciso e não sinto vergonha de deixar ver como vivo.

Sorriu rapidamente e deitou ainda mais próxima de mim
- Algumas vezes despertei dentro do quarto de minha mãe; Ela tem sofrido tanto, olhando fotos
lendo papéis, sentindo perfume nas roupas. A vejo morrendo em alma a cada dia que termina
Olhou para o teto quase sem expressão  -Porem, não consigo mais sentir nada ao ve-la
Deveria ficar tão triste em saber dela sofrer assim, mas não. Sei que algo de errado existe, mas não sei mais chorar, nem sofrer, infelizmente também não mais sei estar feliz.

Não conseguia sentir, por mais que ela estivesse próxima, sentir a vida que ela havia perdido
- Como é?
- Como é o que?
- Morrer - o outro lado?
- Não existe outro lado, apenas esse.
- Não existe? Nada?
- Nada. Ao menos nunca vi.

Curiosamente toda minha fé ou falta dela tiveram um embate mortal com o que ela acabara de dizer
- Você está morta, meu amor. Para onde foi? Eu entrei em um surto absoluto em tantar imaginar para onde você tinha ido, se algum dia iria ve-la novamente. E você me diz que...nada?

- Nada. Desde o acontecido tenho despertado e vagado dia e noite. Vezes aqui, vezes em meu quarto.
Vezes na rua vendo a garoa ou crianças brincar. Dia e noite não fazem mais importancia. Não durmo, não como, não sinto frio. É estranho, poderia dizer que triste, mas não, pois não consigo sentir assim.

Não conseguia entender como aquilo acontecia, mas era tanto a perguntar
- E os outros?
- ...Outros?
- Outras pessoas que morrem, você as vê? Elas existem em algum lugar fora do nosso?

Ela sorriu gentilmente, como de costume em sua vida, e agora morte
- Não, nada existe. O que vejo são todos que vivem, todos meus amigos, minha mãe, irmão, você;
Nunca vi nem fui levada a algo fora. Se existe não fui convidada ainda. O que tenho é existir onde sempre conheci. Vezes ou outra "acordo" em algum lugar que há muito não ia,
e sinto algo que poderia dizer ser bom, mas também não sei mais sentir.
Vejo você mais que qualquer um, e gosto de assistir sua vida, por agora não mais poder tirar proveito das coisas materiais mas ainda te amar, sinto algo que decerto deve ser bom, quando o vejo fazer coisas que eu gostaria.


Puxei seu corpo para perto do meu sem o mínimo medo ou receio do que poderia ser
- 
Você está perto de mim todo esse tempo e sozinha. Não quero! Se não é mais de sua proeza existir e viver o dia, ao menos se faça mais presente para mim, o que outros vão dizer ou pensar não me importa. Saber que você habita perto de mim, aqui, já vale minha vida. Não suma de mim novamente, não se perca em meio a essa morte que a fez levar, meu amor.

Puxou minhas mãos para sua cintura deitada a minha frente e as colocou por cima de seu corpo, nem quente nem frio
- Não existo mais como de costume é, mas estou aqui. Creio que para um outro plano, lado, como quer que chamem, eu nunca irei. A morte é isso; me vi sumir e de repente, despertei sentada na sua mesa, olhando livros que você abandonou de ler. Assim.
Aprendi então a aceitar, mesmo que difícil demais nos primeiros tempos para entender o que havia acontecido. Hoje sei. Não tenho pressa, nada mais posso querer esperar, o que tenho existe só ao meu ver, e para você – sonhar.

Com um medo repentino perguntei
- Então isso é só um sonho? Não há mais chances certas de te ver fora disso? Ah, miséria de ilusão repentina!

Se afastou delicadamente, como costumava ser, sentou a minha frente, me olhando tão doce:
- Não, não é sonho, mas é preciso que você acorde agora para que em sua cabeça mesmo não ache estar entrando em paranoia. Não é mentira nem sonho, estou. Mas preciso que você viva, verdadeiramente. Minha única ocupação nesse eterno existir sem existir agora é ver o dia de quem gosto acontecer, já que nada mais posso. Como é quem mais quis, e mal pude ter - Seja!
Um dia você morrerá também - triste de minha eternidade! Como lhe disse, nenhum dos que já foram posso ver, por isso - exista! Ao contrário do que se pensa, a única forma de estarmos juntos é ainda aqui, o dia que for também não saberei mais onde ou como ter. Amo-te, mesmo sem mais poder sentir.




Não sei se passaram meses, dias ou apenas horas realmente,  mas acordei no mesmo lugar em que deitei da hora que cheguei desse dia do trabalho. Tudo tinha sido real, morto numa vida que foi.
Ela não estava mais ali - nem cheiro, nem presença. Nada. Sabia que precisaria então viver, o mais e melhor para que ela pudesse então poder também ser.


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